sexta-feira, 24 de junho de 2016

O FILHO DA MADRE

Não fiz rodeios, disse, sem meias palavras, ao Padre reitor do Seminário Maior, que recusava terminantemente cursar teologia em Medellín, no Instituto Teológico John Duns Scot. Ao contrário do que o Padre reitor me ofereceu como opção, sempre almejei estudar teologia em Roma. Éramos três seminaristas contemplados com bolsa integral para cursar teologia fora do Brasil. Dois seminaristas, irmãos gêmeos, iam estudar teologia em Roma, no Pontifício Colégio Pio Brasileiro, e o terceiro, no caso eu, iria estudar teologia em Medellín. De imediato concebi a convicção que a escolha do meu nome para estudar em Medellín, tinha por fundamento uma baita de uma discriminação: por eu ser negro, pobre nascido em uma favela da Zona Oeste do Rio e filho de mãe de má reputação. Enquanto os outros dois seminaristas, escolhidos para estudar em Roma, eram branquinhos de olhos azuis com traços fisionômicos europeus e filhos de uma família abastada. Discriminação ou não, impôs minha vontade de recusar a pseudo oportunidade de cursar teologia fora do Brasil. Afinal de contas, eu era já um filosofo, e como filósofo tinha minhas próprias convicções, e fui categórico com meu não. Pasmo, com minha decisão irrevogável, o Padre reitor ficou estagnado por um tempo, até abrir a boca e ordenar que eu me retirasse da reitoria e fosse a capela rezar. Todavia, antes que eu atravessasse a porta de saída, o Padre reitor sentenciou-me: - Prepare-se para o dilúvio que cairá sobre sua vida...  já que você se recusar a ir estudar teologia em Medellín. Abrindo mão de uma grande oportunidade que a Igreja lhe oferece. Pois muito bem, você estudará aqui mesmo no Seminário Maior, a teologia. Creia, aqui você cursará teologia comendo literalmente o pão que o diabo amassou. Não quer ir para Medellín, prepare-se para viver numa merda sem fim... Reflita sobre este trocadilho, na capela."       Optei por encolhi a seco as ameaças do Padre reitor e sai demonstrando vilania, pois de forma propositada bati a porta da reitoria com toda força. Tal petulância do meu ato estava respaldada na certeza que o Padre reitor tinha consciência que era correr risco desnecessário ele me afrontar demasiadamente, pois eu guardava, as setes chaves, segredos inconfessáveis dele. Enquanto transitava no imenso corredor entre a reitoria e a capela, fiquei ruminando em pensamentos sobre tudo que eu sabia da vida particular do Padre reitor. No dia seguinte o Seminário Maior estava em festa, receberíamos a visita do Arcebispo metropolitano que vinha para fazer o anúncio oficial dos seminaristas recém formados em filosofia que iam estudar teologia no exterior. Os preparativos para recepcionamos o Arcebispo estavam de vento em popa. - Para Vossa Reverendíssima todas pompas e circunstâncias, - bradava, reiteradas vezes, o Padre reitor. A mim coube a incumbência de organizar a parte dos cânticos litúrgicos da celebração eucarística que o Arcebispo presidiria na capela do seminário. Por eu saber tocar e cantar com desenvoltura, sempre me delegavam para coordenar os cânticos em celebrações especiais. Escolhi para canto de entrada “Marcha da Igreja", de David Julien. Foi uma imensa surpresa quando, após a celebração eucarística, ainda eu estava desligando as aparelhagens de som, recebi o comunicado que o Arcebispo queria falar comigo, na sacristia. No primeiro momento, sinceramente, pensei que eu fosse receber do arcebispo alguma bronca pela escolha que fiz do repertório dos cânticos para celebração. Justiça seja feita o Arcebispo era um exímio conhecedor de música sacra. Possuído por um extremo receio desmedido fui ao encontro do arcebispo metropolitano, preparado para ser arguido. Quando adentrei na sacristia, estavam o arcebispo, o padre reitor e os dois seminaristas dídimos escolhidos para estudar em Roma. Assim que foi notada minha presença na sacristia, o arcebispo, que ainda estava usando o pálio símbolo da sua qualidade metropolita, solicitou que os demais se retirassem do recito e me deixasse a sós com ele.       - Antes de mais nada quero registrar meu regozijo, em ver como você a cada dia que passar está tocando violão com mais perfeição e afinadíssimo com a voz cantando os cânticos sacros. E por falar em cânticos, receba também minha congratulação pela belíssima escolha dos cânticos", disse essa fala enquanto estendeu sua mão, com o anel pleno símbolo da autoridade episcopal, para que eu beijasse. Mergulhado, no meu interior, em um oceano de felicidade ao receber um estonteante elogio de um renomado especialista em música sacra. Sem demonstrar meu estridente contentamento e o ego inflamando, cabisbaixo, agradeci, com a voz trêmula, a arcebispo metropolitano. - Vossa Reverendíssima está sendo muito amável por tece uma observação tão generosa acerca deste humilde seminarista aprendiz. - Como dizem os franceses: apprivoise-ma, ou seja, cativa-me! Creia, todas as vezes que coloco meus olhos em você, sinto-me cativado cada vez mais. Vamos, vamos nos sentar. Preciso falar com você, antes de irmos ao refeitório jantar... O padre reitor e os demais seminaristas estão no refeitório a nos aguardar. Eu puxei a cadeira da cabeceira da mesa na sacristia para o arcebispo sentar. - Obrigado pela finesse! Sente-se, sente-se também!  Preciso fazer uma criteriosa distribuição de slots do seminário, tal qual em um aeroporto. Sem mais delongas o Arcebispo deu início ao nosso colóquio tendo como introdução uma estrofe poética. - "The stars are putting on their glittering belts. They throw around their shoulders cloaks flash. Like a great shadow's last embellishment." Por obséquio, você pode traduzir para mim está estrofe do belíssimo poema de Wallace Stevens?" Mesmo não sendo o idioma inglês o meu forte, o francês sim, falo influentemente, traduzir, com certa dificuldade a estofe poética, atendendo à solicitação do arcebispo metropolitano. - "As estrelas estão colocando em seus cintos brilhantes. Eles jogam em torno de seus ombros mantos flash. Como no embelezamento de um grande sombra." O Arcebispo bateu palmas para mim. - Parabéns, muito bem traduzida e declamada a estrofe do poema de Wallace Stevens." Creia, esta estrofe poética é literalmente a síntese da sua vida... Inegavelmente você tem muitíssimos dons, e a madre Igreja reconhecerá seus dotes intelectuais e artísticos.  E o promoverá para um cargo eclesiástico de destaque. No entanto, para meu desalento tive conhecimento que você recusou a bolsa integral para estudar teologia, na bela e aprazível Medellín. De posse desta informação, da sua recusa, fiquei perplexo. E fui tomado pelo impulso natural de querer saber da sua própria boca as possíveis justificativas para você recusar esta oportunidade de ouro que a madre Igreja lhe oferecer. Estudar teologia no Instituto Teológico John Duns Scot, em Medellín, na Colômbia não é pra qualquer um não. Você não é um parva, tem inteligência suficiente para saber que é fundamental que conste em seu curriculum o curso de teologia, feito no exterior... - Perdão, senhor arcebispo. Perdão por interromper sua fala, mas eu não estou conseguindo me ater aonde Vossa Reverendíssima quer chegar com essa divagação. Por obséquio, o senhor arcebispo pode ser mais específico? - Tem razão, tem toda razão não vamos perder tempo devaneando... Pois estão nos esperando no refeitório para jantarmos, não é mesmo?  Então vamos ao ponto que interessa, melhor que ninguém você sabe que foi sob os auspícios da madre Igreja que você chegou até aqui... Hoje tu eis um neo filósofo, que se diga de passagem se formou, com a mais alta menção summa cum laude. Destaque notório entre os demais seminaristas do Seminário Maior, do curso de Filosofia. Você de forma sabia, na sua monografia, se propôs a levar adiante uma exegese filosófica, aprioristicamente tomista, com a defesa das ideias de São Tomás de Aquino. Esta sua perceptível, até de olhos vendados, evolução humana com sapiência, nada lembra aquele menino paupérrimo, esquálido que foi resgatado dum favela da Zona Oeste do Rio nos idos de 1990, filho de uma mulher desprovida de moral. E toda essa transformação positiva na sua vida, você deve esta graça a madre Igreja.  Mas que a sua genitora biológica, esta somente lhe pariu e colocou no mundo sem eira nem beira, você deve tudo de bom que enriqueceu sua vida a madre Igreja. Foi a madre Igreja que lhe resgatou de toda miserabilidade que rodeava sua vida na favela da Zona Oeste do Rio. A madre Igreja é sua família, nós Igreja somos sua família. E família é o lócus primitivo da socialização. Portanto, hoje você tem laços fortes e inquebráveis com a madre Igreja. Então, você não deve desobedecer sua madre, a Igreja. Porque ela como sua madre, sabe o que é melhor para você. Sinceramente não tive como contra argumentar, o Arcebispo estava certo. A Igreja foi sempre minha guardiã, a minha mãe. Resumo da ópera: fui estudar teologia em Medellín. Morrei e estudei por quatro anos na Colômbia. (Todos direitos reservados deste texto a Antônio Menrod. Este material não pode ser publicado, transmitido, reescrito ou redistribuído sem prévia autorização)