sábado, 25 de junho de 2016

FEVEREIRO NÃO TEM FIM

-Vosmecê é o jornalista que quer me fazer perguntas acerca do fato assucedido que teve como desfeche a morte matada do meu filho Umberto? -Sou eu mesmo, Sr. Donato Patriota, me chamo Serafim. Serafim Benevides, repórter do jornal Montserrat. -Pois, entonces, vosmecê se achegue, entre. A casa é de pobre, porém é de gente decente. Não se acanhe não, jornalista, pegue um tamborete e se assente. -Com licença, muito agradecido! -Agradecido “tô” eu, o jornalista saiu lá da cidade pra “vim” aqui nesta lonjura de povoado ter um dedo de prosa comigo. É pena que seja por “mode” uma desgraceira que destroçou minha família.  O jornalista quer um gole d'água? Olhe, é água fresca, buscada na nascente e guardada em pote de barro, coisa que na cidade não tem! -Não, por enquanto não, Sr. Donato. Antes de chegar aqui a sua casa, parei na bodega do Sr. Orozimbo, onde começou o desentendimento entre seu filho, Umberto Patriota, e Givaldo Aragão, o suspeito de tê-lo assassinado, para obter informações sobre o caso. Aproveitei e bebi água à vontade. Se o senhor não se incomodar, gostaria de começar a entrevista, Sr. Donato. -Sem problema, o jornalista pode dar início a nossa conversação. Não se avexe não, pode perguntar tudo de cabo a rabo. O antes e o depois do causo da morte matada do meu filho Umberto, que teve a vida retirada deste mundo na flor da idade. Pra início de conversa lhe adianto, jornalista, que meu filho Umberto era um rapagão de muita boniteza! Era garboso, taludo e espertoso. Mas pode começar suas perguntas, jornalista. Sou todo ouvidos. -Hoje, 19 de fevereiro, está completando uma semana que seu filho Umberto foi brutalmente assassinado, em uma tocaia, depois de ter deixado a bodega do Sr.Orozimbo, por volta das oito horas da noite. Como o senhor está lidando com a perda prematura do seu filho? -Vosmecê, jornalista, não deve ter ideia do tamanho da dor que sinto por perder meu único filho homem de morte matada. É uma dor ardida. Uma dor de ferida aberta que jorra sangue sem parar. É tanta dor que sinto que, às vezes, penso que toda dor do mundo “tá” ajuntada dentro de mim. Perdoe eu pelas lágrimas derramadas, jornalista.   -Fique à vontade, Sr. Donato, chorar faz bem à alma. Caso o senhor queira dar um tempo, eu paro com a entrevista. Eu sei que ainda está tudo muito recente. -Acredite, jornalista, chorar virou algo corriqueiro no meu viver, a partir do dia em que coloquei estes meus olhos, que a terra há de comer, no corpo do meu rebento Umberto, crivado com tiros de espingarda, estatelado no chão em uma poça de sangue. Entonces, vamos, vamos adiante com nossa conversação. -É de conhecimento público, que até o presente momento, o suspeito de cometer o crime, Givaldo Aragão, ainda não foi preso. Dizem que a vítima e o acusado eram amigos desde a meninice, é verdade? -E não eram? Eram amigos de galhofas desde o Grupo Escolar. Mesmo assim o dito cujo deu cabo a vida de Umberto sem dó nem piedade. Poucos dias atrás, antes do ato criminoso assucedido, o carcará sanguinolento do Givaldo ficou arreliado porque meu filho Umberto ficou enrabichado por uma moçoila, moradora de lá das bandas de Marrecas. O cabrunquento do Givaldo impôs ao Umberto que escolhesse entre a amizade dos dois e o namorico com a tal moçoila. E o meu filho, mais que sem demora, escolheu namorar a moçoila. Então, o gota-serena do Givaldo, enciumado, atocaiou o Umberto na calada da noite. -Mas o Givaldo Aragão tinha ciúme do seu filho Umberto por quê? -Eu não sei precisar ao jornalista o que tinha entre os dois além da amizade. O que posso lhe afirmar é que eu sou do tempo em que homem só coitava com mulher. Hoje em dia “tá” tudo de penas pro ar: é homem com homem, é mulher com mulher rosetando como se fosse uma coisa normal. A sem-vergonhice se apossou do mundo, jornalista! Somente Deus para ter piedade deste mundo despudorado.    ​-Senhor Donato Patriota, comenta-se que esta não é a primeira tragédia ocorrida em um mês de fevereiro, que flagela sua vida... -Como é mesmo a sua graça? -Serafim Benevides. -Sabe, jornalista Serafim, apesar de eu ter nascido no mês de fevereiro, ele sempre foi um mês de muita sofreguidão para mim! Foi num fevereiro que, de uma só cajadada, perdi minha mulher e minha filha, duas almas dadivosas. Morreram de morte morrida depois de serem atropeladas por um caminhão desgovernado, quando voltavam da missa de domingo. Também foi no mês de fevereiro que tive minha perna esquerda cortada fora, “mode” uma gangrena, em decorrência da diabetes. E agora, também no mês de fevereiro, meu filho Umberto morreu de morte matada. Parece um carma, uma fúria do destino: em um mês de fevereiro ganhei a vida, eu vim ao mundo e sempre neste mês perco tudo de bom que a vida me deu. Sou um homem acabrunhado, sem forças para lutar contra minha sina. A fúria da minha predestinação me deixou no mundo sem esposa, sem filhos e sem uma perna. Se não fosse a minha nova companheira Rosália, que vive amasiada comigo, eu seria um homem completamente sozinho no mundo.   -Sinceramente, eu nem sei o que lhe dizer de confortante depois de ouvir sua história de vida, Sr. Donato. Mas já sei o preâmbulo que escreverei na matéria jornalística sobre suas perdas. Farei a citação de uma frase proferida pelo dramaturgo alemão Bertold Brecht: “Há homens que lutam um dia, e são bons; há outros que lutam muitos dias, e são muito bons; há homens que lutam muitos anos, e são melhores; mas há os que lutam toda a vida: esses são os imprescindíveis!” Não tenho nenhuma sombra de dúvida que esta frase é a síntese da sua vida, Sr. Donato Patriota. -Se é o jornalista que está dizendo, entonces eu acredito. Mas no fundo, no fundo, eu somente me sinto um sobrevivente do mês de fevereiro.   (Todos direitos reservados deste texto a Antônio Menrod. Este material não pode ser publicado, transmitido, reescrito ou redistribuído sem prévia autorização)